sexta-feira, março 14, 2008

Uma doença, um sentimento

A tosse o deixava semelhante a um tuberculoso. Um escarro seco, a expulsar coisa alguma, vinha-lhe atormentando a vida há pelo menos três dias, desde uma virada de tempo trouxe garoa à cidade. O céu azul deu lugar a um cinza escuro, carrancudo, sem aparecer um fio de luz ou calor sequer, apenas frio, frio e mais frio. E aquela penumbra típica do inverno a enegrecer cada prédio, calçada, sombreando ainda mais os becos e cantos da grande metrópole.

Para piorar a situação de nosso herói, eis que na última terça-feira, enquanto voltava do cinema, resolveu caminhar pelas ruas sem tirar o guarda-chuva de sua mochila, enquanto aquele chuvisco gelado caia em seu corpo. Preferia ficar molhado a ter que disputar cada centímetro de calçada com outros guarda-chuvas, mais ignorantes que o dele. No entanto, tossia sem parar, com acessos cada vez mais longos. Parecia em alguns momentos Íppolit*, dada a gravidade do problema. Nessas horas devaneava: “que vontade de morrer até me recuperar dessa enfermidade maldita! Parar com tudo, fechar os olhos e assistir a escuridão total, sem existência, até chegar à cura”.

Era o momento mais alto do delírio que a febre poderia causar. Ali se poderia realmente pensar que o pobre coitado daria cabo da própria vida só para evitar aquele sofrimento. “Pra mim é bem melhor me trancafiar em meu quarto e dormir até passar todo e qualquer sinal que ela ainda está dentro e mim”, rangia com os dentes. Um torpor dominava seu corpo, que passara a ficar dolorido, tirando todas as forças para sair de casa, estudar, encontrar os amigos. Regressara a pouco do trabalho, permanecendo deitado por cerca de duas horas.

“Que filme esquisito aquele. À parte a questão do aborto feito de forma clandestina num país comunista. De qualquer forma, gostei do cenário gélido e triste de uma Romênia oprimida por uma ditadura que nada tinha a ver com o proletariado”, recordara a respeito da película “4 meses, 3 semanas e 2 dias”, que vira no dia em que tomou a chuva que piorou seu estado de saúde. “Aquelas nuvens todas, a escuridão da noite, aquela menina andando por toda a cidade à guisa de solucionar o caos que um sexo feito sem cuidado provocou em sua amiga e que poderia muito bem ela ser a próxima. Mas o que realmente me chamou a atenção foi aquele ambiente melancólico de disputas diárias por um cigarro que não fosse comunista, por uma bala industrializada no país inimigo, por um sabonete de marca capitalista, brigas cotidianas por sobrevivência, nada mais.”

Após divagar, entre um cigarro e uma tossida que por vezes, esguichava sangue no lenço, cismara de levantar e ir ao mercado comprar chá para amenizar seu espírito. Decidido, pôs uma roupa qualquer, encapotou-se com um cachecol e sua boina favorita e rumou ao destino. No caminho foi abordado por uma idosa que pedia um trocado para tomar leite. Como sempre, negou, dizendo não ter dinheiro. Mais tarde, na fila do caixa, uma jovem moça negra pediu 0,50 centavos para comprar pão. E ele havia percebido que ela estava com outros jovens para comprar bebida alcoólica para farrear em algum lugar. Mesmo assim, nosso herói oposto cedeu a moeda e pôs-se a sorrir, satisfeito com a boa ação. Depois percebera o ato idiota que tomara, negando a quem precisava, oferecendo, em contrapartida, a quem não tinha porquê. Enrubesceu e franziu o cenho, demonstrando que se envergonhara do que fizera.

No caminho recebeu um telefonema de uma amiga que o chamara para tomar alguma coisa num bar cerca de meia hora de metrô de onde se encontrava. Aceitou o convite sem dizer como estava, apesar de que a tosse durante a conversa evidenciara seu estado. “Você está bem?” Perguntava a interlocutora. “Estou ótimo, só preciso de um chá e em uma hora estarei aí”, respondera nosso cavaleiro hipocondríaco.

Subiu as escadas do edifício cambaleando. Conseguiu, sofregamente, fazer o chá e tomá-lo com um remédio para melhorar um pouco e conseguir sair. Mas não foi possível. Desmaiou no chão da cozinha, acordando somente quatro horas depois, com o barulho distante de uma ambulância, que indicava que a ajuda se aproximava. E era verdade. Dois minutos depois a porta era arrombada com auxílio da equipe de resgate, erguendo o corpo que jazia no piso congelante para uma maca, iniciando o diagnóstico e tratamento. Graças a sua amiga que estranhou a voz ao telefone e, ainda mais, a demorar em mais de duas horas para aparecer ou dar qualquer retorno, sem sequer atender o celular.

Com o rosto lívido, acordara do desmaio, mas seus olhos arregalados e inertes demonstravam que ainda estava com a consciência distante. E realmente assim se sucedia. Sua mente estava em uma garota que vira no cinema na última terça-feira. Garota essa com quem trocara algumas palavras a respeito do filme, num banco verde que se encontrara numa espécie de sala de espera, ou ante-sala, onde se aguarda para a próxima sessão ou se conversa a respeito do filme visto, a base de café, salgados e tudo que seu dinheiro possa pagar. Mas ele tomara apenas um capuccino, já que a grana estava curta. Ela comera um pão de queijo e tomara um achocolatado bem quente para combater o frio que se apoderara daquele fim de tarde.

Bateram papo por cerca de uma hora, até ela pular da cadeira como quem recorda de algo e partir, num sobressalto, pela rua, sem se despedir do novo amigo. O rapaz, por sua vez, nem tivera tempo de objetar coisa alguma, ficando boquiaberto com a beleza da garota e surpreendido aquela atitude. Só percebeu que não possuía nenhum contato dela, muito menos sabia seu sobrenome somente cinco minutos depois, quando se refez da cena. Saiu atordoado, derrubando xícaras, cadeiras, sobre as pessoas. Correu feito um maluco, em vão. Ela já tinha partido. Ele, então, passara a acreditar nos dias subseqüentes que esse curioso evento contribuíra para a piora de sua situação, mas segredara em seu coração esse pensamento. Até aquele momento.

“Acorda homem!”, exclamava sua amiga, tirando-o das recordações recentes. “Você está sendo levado para um hospital. Você desmaiou, bateu a cabeça e quase teve traumatismo craniano com a queda. O que tens? Por que não me avisou que estava doente?”, reclamava, insistentemente. Ele, ao contrário, quase não conseguia pronunciar coisa alguma, balbuciando apenas o nome daquela que encontrara três dias antes no cinema: “Helena! Helena!”.

* Íppolit, personagem da obra “O Idiota”, de Dostoievski. Um jovem tuberculoso à beira da morte, que aproveitava sua condição de quase-moribundo para se fazer de coitado e, ao mesmo tempo, acertar as contas com seus adversários e azucrinar quem quer que fosse. As descrições do autor sobre como eram os acessos de tosse do personagem são muito reais.